O CNCG em época de turbulência

O coronel Paulo José Reis de Azevedo Coutinho, comandante-geral da Polícia Militar da Bahia, acaba de ser eleito presidente do CNCG – Conselho Nacional de Comandantes Gerais. É uma época turbulenta. Além das eleições – em que as polícias militares estarão na pauta de candidatos a todos os cargos em disputa, da Presidência da República às assembleias legislativas – o Congresso Nacional vai votar a Lei Orgânica, uma necessidade de décadas. O que o CNCG pode fazer para decidir questões neste cenário? Qual é o seu papel? Como lidar com a época e as necessidades das polícias militares? Essas são as principais questões respondidas na entrevista a seguir.

O senhor acaba de ser eleito presidente do CNCG – Conselho Nacional de Comandantes Gerais. Qual será a marca de sua gestão?
Sempre tive como marca de gestão a dedicação, o profissionalismo, a probidade, a excelência e o alcance de resultados. Isso resume a minha gestão por todas as Organizações Policiais Militares por onde passei, como tenho feito atualmente à frente do Comando Geral da briosa Polícia Militar da Bahia. À frente do CNCG, não será diferente.

O segundo item do Estatuto diz que o CNCG deve “acompanhar, em articulação com os órgãos competentes, a implementação da política nacional de segurança pública”. Temos uma política nacional de segurança pública no Brasil?
Existe, sim, uma política nacional de segurança pública, preconizada na Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), bem como foi instituído o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030, por meio do Decreto nº 10.822, de 28 de setembro de 2021. De acordo com a lei, a União estabelece a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e os Estados, Distrito Federal e Municípios estabelecem suas respectivas políticas, observadas as diretrizes da política nacional. Nosso papel, enquanto Presidente do CNCG, é exatamente acompanhar e contribuir para a implementação dessa política. Para tanto, já estamos desenvolvendo o nosso planejamento estratégico 2022-2023 que contemplará projetos, iniciativas e ações, para, em articulação com os órgãos competentes, contribuir para a implementação idealizada.

Quais são os pontos positivos da atual política de segurança pública?
São, justamente, a interação, colaboração mútua, coesão e alinhamento de objetivos entre os órgãos do sistema de defesa social envolvidos, em todos os âmbitos da Administração: federal, estadual e municipal; foco no aprimoramento da formação profissional; a criação da doutrina nacional de polícia comunitária; bem como a ideia de que devemos trabalhar com prevenção e repressão qualificada, sobretudo com uso de inteligência policial, análise criminal e uso da tecnologia.

Esta é a “segurança pública” ideal?
A ideal é aquela contemplada no artigo 144, caput, da Constituição federal: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.” Seria a segurança pública em que todos os órgãos cumpririam com excelência o seu respectivo papel, o seu dever. O cidadão estaria cônscio de que é seu direito mas que também ele tem responsabilidade e coparticipação com relação à segurança pública, seja acatando as leis, seja estreitando as relações com os órgãos policiais. E, para complementar, o sistema judicial também cumpriria com excelência o seu papel na interpretação e aplicação de leis que realmente atendam às necessidades da sociedade, em termos de segurança pública, além do sistema prisional, que realmente ressocializaria o preso condenado, de forma a que ele não voltasse a delinquir. Enfim, a segurança pública ideal é aquela em que todos os órgãos do Estado atuem de maneira sistêmica, harmoniosa e otimizada, num verdadeiro pacto federativo, proporcionando ao cidadão e às pessoas jurídicas o exercício das liberdades, dos direitos e das garantias, para que possam exercer suas atividades num clima de tranquilidade e paz social.
Entretanto, releva destacar que o país há de resolver, urgentemente, como prevenção, problemas graves relacionados a questões sociais como educação, fome, moradia, emprego, dentre outros, pois todos esses problemas terminam por se transformarem em um problema de segurança pública.

No terceiro item do Estatuto está escrito que o CNCG deve “promover a aproximação entre as instituições militares estaduais, visando à integração de esforços no sentido do exercício de sua representatividade política e jurídica”. Como o sr. pretende fazer isso?
A representatividade política e jurídica das instituições policiais militares no Brasil, atualmente, é bastante robusta e consolidada. As bancadas nas casas legislativas têm sido bastante atuantes, com resultados positivos, não só em termos de ganhos para a categoria mas sobretudo no que diz respeito a questões relacionadas à segurança pública. Entendo que a soma de esforços, com a atuação conjunta dos comandantes-líderes das Corporações, trabalhando dentro de uma metodologia previamente traçada e com foco nos objetivos e metas do plano estratégico que já está em elaboração, resultará em ganhos e avanços para a segurança pública.

Associações estaduais representativas de policiais e bombeiros militares, e a FENEME, que é nacional, têm como uma de suas bandeiras a implantação do Ciclo Completo de Polícia no Brasil. São também os objetivos do CNCG? O que o sr. pensa disso, como caminhar nesse sentido?
O ciclo completo de polícia é aplicado em diversos países, com muito bons resultados, a exemplo dos países da Europa e da América. Isso requer uma mudança legislativa e também estrutural das instituições hoje existentes no Brasil. Há tempos já se discute o assunto, com opiniões divididas, mas ainda não prosperou a ponto de ser implantado. No que diz respeito ao ciclo completo de polícia nos crimes de menor potencial ofensivo, já há grande avanço. Foi paulatino, mas hoje já estamos bem avançados se considerarmos que cerca de 70% do universo das polícias militares o realizam. A ideia é trabalhar com projetos que sejam cada vez mais capazes de convencer os legisladores e as autoridades decisórias no âmbito da segurança, sobre os reais benefícios desse modelo do ciclo completo em todos os delitos. Para tanto, a representatividade política e jurídica unificada através do CNCG contribuirá deveras para esse intento.

Hoje, em 10 Estados brasileiros a Polícia Militar não lavra TCO em crimes de menor potencial ofensivo. O que o CNCG pretende fazer para reverter este quadro?
Durante muito tempo discutiu-se acerca de questões jurídicas, como a competência para lavratura, o conceito de “autoridade policial” do artigo 69 da lei 9.099/95, a natureza jurídica do TCO se mero boletim de ocorrência mais circunstanciado ou ato investigativo de polícia judiciária. Com o passar do tempo, a jurisprudência nacional foi se consolidando, sobretudo no STF, e hoje tais questões são pacíficas, no sentido de que a Polícia Militar tem competência para tal lavratura, pois o TCO não é ato de polícia judiciária. Ocorre que, mesmo assim, em alguns Estados a Polícia Militar não lavra o TCO por conta das diretrizes e das políticas de Secretaria da Segurança Pública em cada um deles. O nosso plano à frente do CNCG é tentar evidenciar para a sociedade e para os gestores responsáveis pelos órgãos de segurança pública todos os benefícios do TCO pelas polícias militares buscando a reflexão, discussão e adesão a essa boa prática, que impactará favoravelmente nos índices de segurança pública. Da mesma forma, com a união de forças políticas, iremos buscar a devida providência legislativa junto à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, com a edição de leis que regulamentem de forma precisa a questão, que já está em discussão há tempos naquelas Casas Legislativas.

A PM da Bahia, que o sr. comanda, não lavra TCO. Quais medidas estão sendo tomadas para que isso possa ser feito?
Já houve várias tentativas para que a PMBA lavrasse o TCO, sobretudo em unidades do interior do Estado, em comum acordo com o Ministério Público e com o Poder Judiciário locais, mas a prática não perdurou em acatamento às diretrizes da Secretaria da Segurança Pública. Contudo, atualmente, foram reabertas as discussões com a Secretaria da Segurança Pública no nosso Estado, que estão em fase bastante avançada.

Quais os pontos positivos, aqueles que contribuirão para o desenvolvimento das polícias e dos corpos de bombeiros militares, presentes no projeto de Lei Orgânica em tramitação no Congresso Nacional?
O projeto de Lei 4363/2001, da Lei Orgânica das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares, que tramita na Câmara Federal objetiva, sobretudo, dar uma organização nacional única e modernizar, em alguns aspectos, a estrutura das Instituições Militares. Busca-se conceder um tratamento mais igualitário entre os militares estaduais, em termos de deveres, direitos e garantias básicas. Ademais, pretende adequar as Corporações à realidade política e social atuais. Os pontos positivos mais importantes, na minha opinião, são a garantia do mandato do comandante-geral; a criação do quadro temporário de oficiais e praças, que já existe em algumas polícias; a exigência de escolaridade superior para o ingresso; a garantia da assistência jurídica pelos órgãos oficiais (Defensoria Pública, Procuradoria do Estado, AGU) aos policiais militares submetidos à persecução penal ou administrativa por atos praticados no exercício do serviço. Na minha gestão na PMBA eu concretizei essa garantia, com a parceria da Defensoria Pública Estadual, que tem uma sala no Comando Geral para tal mister. Temos também uma regra interessante que trata da promoção do PM que figurar por três vezes consecutivas na lista ou cinco alternadas. Isso dará um maior fluxo à carreira.

Setores ditos “progressistas” na política indicam que poderão promover mudanças profundas na segurança pública, em especial nas polícias militares. Como o sr. vê este cenário e como pretende lidar com essa nova possível realidade?
Essas propostas de mudança existem há algum tempo, a exemplo inclusive da PEC 51/2013 e da PEC 431/2014, que foram arquivadas. Há aspectos interessantes realmente para a melhoria da segurança pública, mas quanto a outras propostas de modificação não as vejo como solução próspera, a exemplo da desmilitarização das PM.

Por quê?
A segurança pública é tema complexo, e diz respeito a um sistema composto por órgãos de defesa social, em interoperabilidade com o Ministério Público e o sistema de justiça (Poder Judiciário), cada um com o seu papel, visando sempre ao interesse público. Não podemos deixar de destacar, ainda, que o Poder Legislativo também tem importante influência na segurança pública, pois a ele cabe editar as leis que proporcionarão ao cidadão e aos órgãos envolvidos exercerem suas liberdades e seus misteres.

Mas este é um tema espinhoso para o Legislativo. O que o sr. sugere?
É crucial uma mudança na legislação penal brasileira, pois leis brandas para infratores que praticaram crimes graves têm sido um relevante empecilho para a prestação do serviço de segurança pública. Apenas para citar um exemplo, dois indivíduos foram presos em flagrante por roubo à mão armada em estabelecimentos comerciais, e soltos em 24 horas na audiência de custódia. Na mesma semana, foram presos novamente em nova investida criminosa, por roubo à mão armada também. Logo, vê-se que a segurança pública perpassa por todo um sistema em que cabe ao Estado (sociedade politicamente organizada), por meio dos seus órgãos e Poderes, estruturar-se para enfrentar os desafios.

Seriam necessárias leis mais rigorosas, por exemplo?
Sim. A lei precisa ser mais rigorosa e as penas impostas devem ser integralmente cumpridas, sem benefícios para crimes mais graves, como a liberdade condicional após o cumprimento de um sexto da pena. Além disso, a lei deve ser bastante clara e objetiva, para não permitir interpretações que fujam da realidade social vivida no nosso país, a exemplo do tema “fundada suspeita”, contido no Código de Processo Penal, no caso da abordagem policial com busca pessoal. Uma interpretação equivocada dos tribunais inviabilizaria o trabalho policial, que tem nessa prática um significativo fator determinante de excelentes resultados de apreensão de drogas, de armas, de prisão de infratores, de resgate de vítimas de sequestros-relâmpagos etc.

Como se faz isso?
Para promover melhorias estruturais e eficazes na segurança pública no país, é necessário a observância e interferência no funcionamento de todo o sistema dito, e não apenas em órgãos pontuais. Ademais, deve-se atentar para o respeito à observância do pacto federativo, previsto constitucionalmente, sem retirar a autonomia e competência administrativa dos Estados, a quem pertencem as polícias militares, pois as realidades são bastante diferentes em cada região do Brasil.

Volta e meia alguém fala em desmilitarizar a polícia. Que resposta o sr. e o CNCG dão a essa proposta?
Somos contra. As leis, os regulamentos, os costumes e as tradições militares das polícias militares fazem parte de uma estrutura quase bissecular. A PMBA, por exemplo, completará seu bicentenário no vindouro ano de 2025. Isto é essencial para a atividade policial. O pronto acatamento às ordens superiores, o rigor comportamental exigido dentro e fora do serviço, dentre outros, explicam por que, durante todo esse tempo, temos prestado um serviço de segurança pública cada vez melhor e com reconhecimento da comunidade. Por isso vejo com muito bons olhos a proposta do ciclo completo de polícia, em que todo órgão policial se responsabilizará cumulativamente pelas tarefas ostensivas, preventivas e investigativas para a persecução criminal.

Em oito estados brasileiros, mais o DF, o comandante-geral tem autonomia administrativa. Nos demais, inclusive na Bahia, os comandantes estão subordinados ao Secretário da Segurança Pública. Como sr. vê este cenário? O CNCG pode agir para mudar este quadro? O sr. pretende agir neste sentido?
Trata-se de uma questão de política de segurança pública conferida aos chefes do Executivo estadual pela Constituição Federal. É certo que, quanto mais autonomia o gestor tiver, no caso o comandante-geral, mais oportunidades ele terá para executar seus planos, projetos, ações e iniciativas, em busca dos resultados e metas. Não há muito o que o CNCG possa fazer para alterar a situação nos estados, nesse tema. Mas penso que, como ocorre na Bahia, se o secretário da Segurança Pública e o comandante-geral estiverem coesos, trabalhando com respeito mútuo e colaboração, os resultados surgirão. Na Bahia, neste ano, temos uma redução de 11,6% de crimes violentos letais intencionais (homicídios) e redução de 46 % de roubos em coletivos, que são metas alcançadas.

Em apenas sete Estados brasileiros basta apenas o nível médio para ingresso no oficialato, dentre eles o seu Estado, a Bahia. Qual sua opinião sobre exigir o bacharelado em Direito para as Academias? O CNCG pode agir para melhorar a qualidade dos candidatos?
Na Bahia, assim que assumi o comando da PM, designei uma comissão de oficiais superiores para elaborar o plano de carreira das categorias de praças e de oficiais. Dentre os temas propostos estão a alteração da nossa legislação para exigirmos os cursos de graduação em qualquer área para o ingresso como aluno-a-soldado e graduação completa em Direito ou Administração para ingresso como aluno-a-oficial. Obviamente, essa é uma decisão do chefe do Executivo estadual, e estaremos apresentando brevemente proposta nesse sentido. Este tema é abordado na Lei Orgânica das polícias e corpos de bombeiros militares que tramita na Câmara Federal, e encontramos resistência dos parlamentares na exigência de título de bacharel em Direito a candidatos às academias de Polícia Militar. A saída é valermo-nos da representatividade política do CNCG para convencer os parlamentares de que se trata de um avanço, pois teremos oficiais mais preparados juridicamente para atuar na segurança pública.